Dizem que a
garça cinzenta é um animal que dá sorte.
Quando ela aparece no caminho dos pescadores eles ficam cheios
de alegria, na certeza de que é um prenúncio
de farta pescaria. E acontece o mesmo com todas as pessoas
que são pelo menos um pouquinho supersticiosas. Ao
ver a garça cinzenta, abrem logo largos sorrisos de
satisfação pela esperança de sorte no
trabalho, no jogo, no amor.
Raramente ela aparece por aqui.
Ela é da cor das manhãs de nevoeiro e tem na
cabeça uma plumagem preta, como se fosse um chapéu,
ou melhor, uma coroa; um sinal talvez de realeza.
Sua raridade desperta natural
curiosidade. Por quê existem tão poucas ? Por
quê não vêm mais por aqui ? Como surgiram,
se todas as outras garças são completamente
brancas ?
Essas perguntas sempre me intrigam
e, com certa vez, ouvi uma explicação muito
interessante que me foi dada por um dos mais antigos pescadores
de Paquetá. Ele era filho de um escravo que viveu aqui
por muitos anos e que trabalhou nas caieiras, onde todos os
negros eram chamados de "pés-de-pavão",
porque pisavam no cal e ficavam com as pernas brancas como
as daquela ave. O pai desse meu amigo pescador disse ter aprendido
essa história com um outro escravo bem mais velho do
que ele e que conhecia muito bem todas as lendas sobre os
índios tamoios que viveram em Paquetá. É
a "lenda da garça cinzenta", que agora vou
lhes contar:
"Ela fala
de um Kuru-mi que no dia foi caçar em Ajurubá-Ibá
- a ilha das árvores dos papagaios e encontrou lá
um ninho abandonado, com um ovo solitário dentro dele,
e pensou então que talvez fosse melhor trazê-lo
para Pac-etá - a ilha das muitas pacas - onde ele tinha
um socó que vivia na sua oca, na praia da Imbuca (águas
que rebentam) e que comia na sua mão, peixes que ele
lhe dava. Aquele socó quase não voava, andava
pela oca, ciscava na beira da praia e era mansinho. Quem sabe
fosse fêmea e pudesse chocar no seu ninho o ovo achado
em Ajurubá-Iba pelo Kuru-mi ? E foi o que o indiozinho
fez: Trouxe o ovinho e o colocou no ninho do socó que,
de pronto, deitou-se por cima dele e o chocou com enorme alegria.
No tempo certo, a avezinha nasceu, quebrou a casca do ovo,
esticou o pescoço e saiu. E em breve pos-se de pé,
piando e andando atrás do socó, à espera
de larvas e de peixinhos. Ela tinha a mesma cor do socó,
mas alguma coisa parecia diferente: tinha o bico, o pescoço,
e as patas muito compridas, ao contrário dos socós,
mas o seu jeito era o mesmo que o delas, e ficava cada vez
mais parecido com eles, à medida em que mais convivia
com a sua mãe adotiva.
A avezinha passou toda a sua vida
assim, no meio dos outros socós, voando pouco, ciscando
na beira da praia e aceitando comida na mão, sempre
mansinha.
Um dia (e é bom lembrar
que essa história aconteceu há muito tempo,
quando os bichos falavam), a garcinha-cinzenta, que pensava
que era um socó, viu uma linda e elegante ave branca,
como a neve, com o bico, o pescoço e as patas bem parecidas
com os seus e que passou voando por perto da Ilha dos Lobos,
juntinho da água e mergulhou, de súbito, o seu
bico no mar, pescando com grande habilidade um mamarreis prateado.
E a garcinha-cinzenta, encantada com o que estava vendo, perguntou
a um socózinho que estava com ela na praia.
- "Que ave bonita é aquela ?"
Ao que o socózinho respondeu:
- "Ah ! Aquela é uma garça, a melhor pescadora
de todas as praias.
Mas não adianta você ficar querendo pescar com
ela não. Você é apenas um socó
de pescoço comprido!"
E assim, a garcinha-cinzenta está pensando até
hoje que ela é apenas um socó de pescoço
comprido. E é por isso que ela voa pouco, pesca pouco
e apenas marisca na beira do mar.